Por uma Carta dos bens fundamentais

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   Luigi Ferrajoli**

Trad. Sérgio Cademartori

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Uma redefinição do conceito de bens. 3. Bens fundamentais e bens patrimoniais. 4. Uma tipologia dos bens fundamentais: bens personalíssimos, bens comuns e bens sociais. Por uma carta constitucional dos bens fundamentais. 5. Os bens personalíssimos. 6. Os bens comuns. Por um domínio público planetário. 7. Os bens sociais. 8. Por um constitucionalismo a longo prazo e de espaços amplos e por um garantismo global dos bens fundamentais


1. Introdução – Na tradição do constitucionalismo democrático, as necessidades e os interesses vitais das pessoas  estipulados como merecedores de tutela tem sido expressados quase sempre sob a forma de direitos fundamentais: da vida à integridade pessoal, da liberdade à sobrevivência, da instrução à saúde, todos os valores essenciais e vitais, desde sempre proclamados nas cartas constitucionais como o fundamento e razão de ser do edifício  jurídico, foram inicialmente reivindicados, e posteriormente reconhecidos e tutelados, através da atribuição aos indivíduos de expectativas, ou de pretensões ou faculdades, concebidas sempre como direitos subjetivos.  Paralelamente foram sobretudo, para não dizer somente, os direitos fundamentais os que  delinearam aquele sistema de limites e vínculos substanciais aos poderes públicos que denominei “esfera do indecidível”, formada por aquilo que a nenhum poder, nem mesmo à maioria, é consentido decidir ou não decidir.

    A questão que tentarei abordar  é se a estipulação  de tais direitos, e as obrigações e proibições correspondentes aos mesmos,  é suficiente para assegurar uma garantia adequada a todas as necessidades e a todos os interesses vitais, particularmente aqueles de tipo coletivo. É suficiente, por exemplo, o reconhecimento do direito de todos a viver num planeta habitável – ao não aquecimento global, à não poluição dos mares, à não depredação dos recursos naturais – para sugerir as formas de prevenção de catástrofes provocadas por esses  eventos, cujas dimensões vão muito além das possibilidades de intervenção  de qualquer jurisdição? A atribuição a todos do direito à vida e à saúde, embora estatuído em tantas cartas constitucionais e internacionais, é capaz de garantir a vida e a saúde aos milhões de pessoas que hoje vivem na indigência e  que, na quase totalidade dos casos, não tem um juiz perante o qual demandar justiça, pela inexistência de  tal juiz, ou porque não possuem os meios para requerê-la? Naturalmente, a afirmação de tais direitos e das respectivas obrigações e proibições é essencial para a sua tutela. Mas ela é também, nos casos exemplificados, suficiente?

     Aquilo que caracteriza todas estas catástrofes e estas emergências é o fato de que os correlativos direitos, consistentes ora em expectativas negativas de não-lesão, ora em expectativas positivas de prestação, têm por objeto os bens – a atmosfera, o equilíbrio ecológico, a água, a alimentação básica, os medicamentos  essenciais – em cuja proteção ou  cuja prestação consiste a sua garantia. Este ensaio pretende  evidenciar como a garantia desses bens, que denominarei de  “fundamentais”, e com  eles seus direitos correlativos, requerem disciplinamento autônomo e específico, que vão muito além dos interesses e direitos dos indivíduos singulares  e da sua capacidade e possibilidade de intervenção.

2. Uma redefinição do conceito de bens – O termo “bens fundamentais” é desconhecido na linguagem jurídica usual. Com ele designei uma subclasse dos bens que por sua vez  são uma subclasse das coisas1 . “Coisa” e “bem” são por sua vez termos do léxico jurídico tradicional. São “coisas” todos aqueles objetos observáveis e tangíveis que possuem um valor de uso  e são por isso utilizáveis   pelos seres humanos2. Não são “coisas”, por exemplo, todos os corpos físicos inacessíveis, dos quais é portanto impossível o uso, como um terreno situado na lua , ou as estrelas, ou os minerais localizados no centro da Terra. Sim o são por sua vez os objetos úteis porque utilizáveis pelo homem: além dos bens materiais, também as coisas acessíveis e disponíveis a todos, como o ar, a energia solar, os animais, os peixes do mar, e, em geral, a res nullius.

     Quanto aos bens, a sua definição corrente na doutrina jurídica é aquela oferecida pelo art. 810 do  código civil italiano: “São bens as coisas que podem ser objeto dos direitos”. Neste sentido, prossegue o código, os bens se distinguem em bens imóveis e bens móveis. “São bens imóveis”, diz o art. 812, “o solo, as nascentes, os cursos d’água, as árvores,  os edifícios e outras construções, mesmo se unidas ao solo de forma  transitória, e em geral tudo aquilo que naturalmente ou artificialmente é incorporado ao solo...São móveis todos os outros bens”. Em outras palavras, são “imóveis” todos aqueles bens que não podem ser transferidos materialmente, pelo que a sua venda, como diz o art. 1350 n. 1 do código, deve fazer-se através de ato escrito. São por sua vez “móveis” todos os bens que podem mover-se e são por isso transferíveis materialmente, mediante entrega, juntamente com a sua posse. Há ainda outras divisões dos bens, até de tipo naturalista, operados pela doutrina: entre bens divisíveis e indivisíveis, fungíveis e infungíveis; entre bens consumíveis e não consumíveis e ainda deterioráveis.

      Em todas estas acepções a noção de bem designa, evidentemente, apenas os “bens patrimoniais”, enquanto tais virtualmente disponíveis e alienáveis, já que “objetos de direito” por sua vez patrimoniais. Não por acaso a definição de bens oferecida pelo citado art. 810 abre o Livro III do código civil sobre a propriedade privada, isto é, sobre o mais clássico e importante dos direitos patrimoniais, e sobre os outros direitos reais. Uma coisa torna-se um bem patrimonial quando, por sua escassez e por seu valor de troca, faz-se objeto de um direito patrimonial específico3.

      Existem no entanto bens que não são coisas, como são todos aqueles que a doutrina, acolhendo a noção civilista dos “bens” como coisas, isto é, como entidades materiais, chama contraditoriamente de “bens imateriais”, isto é, não corpóreos nem concretamente tangíveis: como as obras do talento ou as invenções industriais objetos de patente, as criações intelectuais objetos de direitos de autor, as marcas e os produtos financeiros4 . E existem bens que não são objeto de direitos patrimoniais, como o ar, as áreas e fundos marinhos e os órgãos do corpo humano, cujo traço distintivo, contrariamente àquele dos bens patrimoniais, é a sua indisponibilidade, isto é, a sua subtração ao mercado enquanto bens, como chamados pelos romanos, extra commercium e extra patrimonium.

      A definição legislativa fornecida pelo art. 810 do código civil, embora tenha o mérito da simplicidade, é, no plano da teoria do direito, duplamente restrita e portanto carente de uma adequada capacidade explicativa: porque limita os bens apenas às coisas, e, mais do que isso, apenas às coisas que são objetos de direitos patrimoniais. Para dar conta de todos os bens que não são nem coisas nem bens patrimoniais, e que no entanto são relevantes como objeto de tutela e de todas formas de disciplina jurídica, é útil  assumir uma definição teórica mais ampla: ‘bem’ é aquilo que pode ser objeto de uma situação jurídica5 . Neste sentido a noção de bem resulta mais extensa do que aquela usual sob dois aspectos. São ‘bens’ com base naquela, não somente as coisas que são o objeto de direitos patrimoniais, mas ainda: a) os bens imateriais, que não são coisas, pelo menos se se acolhe a noção corrente de coisa como “porção do mundo externo perceptível pelos sentidos”6 ;  b) todos os bens que não são o objeto de direitos patrimoniais, dos assim chamados ‘bens comuns’, correspondentes aos romanísticos res communes omnium, como o ar, o solo oceânico e a biodiversidade, aos bens como os órgãos do corpo humano, dos quais, como diz o art. 5 do código civil italiano, são proibidos aos atos de disposição “quando ocasionam uma diminuição permanente da integridade física, ou são outrossim contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes”; c) todos os bens, afinal, que são o objeto não já de direitos, mas de proibições, e que por isso podemos chamar de bens ilícitos porque  é proibida a sua produção e/ou seu comércio e/ou sua utilização e/ou sua detenção7.

3. Bens fundamentais e bens patrimoniais – Sobre esta base, podemos formular duas grandes distinções. A primeira, ressaltada pela doutrina, embora operada contraditoriamente sobre a base da conotação de ‘bem’ como ‘coisa’ fornecida pelo art. 810 do código civil, é aquela feita entre bens materiais e imateriais: são bens materiais todos os bens consistentes em coisas; são bens imateriais todos os bens não consistentes em coisas, como as marcas, as obras do engenho humano e as criações artísticas ou intelectuais8.

      A segunda distinção, bem mais importante, embora ignorada pela doutrina corrente, é aquela, à qual dediquei este ensaio, entre bens patrimoniais e bens fundamentais. Podemos chamar de bens patrimoniais os bens disponíveis no mercado através de atos de disposição ou de troca, a par dos direitos patrimoniais dos quais são o objeto, a cujos titulares é portanto reservado o seu uso e gozo. Chamarei por outro lado de bens fundamentais os bens cuja acessibilidade é garantida a todos e a cada um porque objeto de outros tantos direitos fundamentais e que por isso, da mesma forma que estes, são subtraídos à lógica do mercado: como o ar, a água e outros bens do patrimônio ecológico da humanidade e, ainda, os órgãos do corpo humano, os fármacos considerados “essenciais” ou “salva-vidas” e similares. Temos assim uma distinção na qual é fácil reconhecer a analogia com a respectiva distinção dos direitos subjetivos em direitos patrimoniais e direitos fundamentais9. As duas distinções residem na correlação sintática expressa pelas definições das duas classes de bens: aquela de bens patrimoniais como qualquer bem que seja objeto de um direito patrimonial, e aquela de bens fundamentais como qualquer bem que seja objeto de um direito fundamental primário10. Naturalmente, enquanto todos os bens fundamentais são, por definição, objeto de direitos fundamentais, não é verdade a tese contrária: somente alguns direitos fundamentais – tais como o direito à imunidade, o direito à integridade pessoal, e alguns direitos sociais, como o direito à saúde e à alimentação básica – tem como objeto bens fundamentais.

      As duas distinções –  entre os bens e esta e a dos direitos – refletem portanto diferenças estruturais análogas. Os direitos fundamentais, segundo a definição por mim proposta, são todos aqueles direitos que dizem respeito universalmente a todos enquanto pessoas e/ou cidadãos e/ou pessoas com capacidade de fato, que enquanto tais são prescritos imediatamente por normas, as quais designei por isso mesmo “téticas” e precisamente “tético-deônticas”, sendo consequentemente indisponíveis e inalienáveis11. Analogamente, também os direitos fundamentais são universais, no sentido de que seu desfrute é acessível a todos pro indiviso ou igualmente reservado a todos e a cada um de maneira exclusiva; são além disso também qualificados como tais imediatamente por normas “téticas”,  e precisamente “tético-constitutivas”12; são também, finalmente, subtraídos à disposição e à apropriação privada. Pelo contrário, os direitos patrimoniais são todos aqueles direitos que dizem respeito singularmente aos seus titulares com exclusão dos outros; que enquanto tais são não já diretamente dispostos, mas predispostos por normas, por isso ditas “hipotético-deônticas” como efeito dos atos por elas hipoteticamente previstos; que são por isso disponíveis e alienáveis13. E analogamente também os bens patrimoniais são bens singulares, no sentido de que seu desfrute é garantido exclusivamente aos titulares dos direitos patrimoniais dos quais são objeto; são predispostos por normas hipotético-deônticas juntamente com os respectivos direitos, dispostos como efeitos dos atos por elas hipoteticamente previstos; e são por isso, a par dos direitos dos quais são objeto, disponíveis e alienáveis14

     Há  no entanto uma diferença entre a indisponibilidade dos direitos fundamentais e a dos bens fundamentais. Enquanto a primeira é uma indisponibilidade conceitual, por assim dizer lógica e portanto inviolável, ligada à natureza de generalidade, abstração e heteronomia das normas que estabelecem direitos fundamentais, a segunda é uma indisponibilidade somente jurídica, e portanto passível de violação, dado que os bens fundamentais, de fato, são sempre materialmente disponíveis. Por isto, a garantia da indisponibilidade de tais bens  possui a forma de proibição, de fato violável, de disposição. Em suma, enquanto a indisponibilidade dos direitos fundamentais é do tipo alético, de tal modo que uma eventual disposição dos mesmos é sabidamente inexistente, aquela dos bens fundamentais é de tipo deôntico, pelo que uma sua eventual disposição seria apenas um ato ilícito. Um ato de venda da liberdade de consciência ou de manifestação do pensamento, por exemplo, seria irrealizável e sem sentido, dado que as normas que estabelecem tais liberdades são normas heterônomas cuja existência é independente de qualquer coisa que possamos pensar ou fazer. Pelo contrário, a venda ou a destruição de um bem fundamental são fatos, talvez irreversíveis, dos quais o direito não pode impedir a sua concreta comissão, mas somente proibi-la e puni-la como ilícita.

      Não  é supérfluo acrescentar que para a ciência jurídica a natureza patrimonial  ou fundamental de um bem depende do direito positivo: um bem fundamental, como por exemplo um órgão vital do corpo humano, tornar-se-á patrimonial se os direitos sobre ele se tornarem disponíveis; inversamente, um bem patrimonial,  como por exemplo água ou os medicamentos essenciais, tornar-se-iam fundamentais se não fosse proibido o desperdício e fosse obrigatória a sua distribuição a todos. Pelo contrário, para uma teoria da justiça são fundamentais todos e somente aqueles bens por ela assumidos como vitais e por isso merecedores de tutela, independentemente daquilo estabelece o direito positivo. Diferente é finalmente o ponto de vista aqui adotado de teoria do direito15.  Neste plano a distinção não possui nada de ontológico. Não se diz quais bens são ou é justo que sejam fundamentais ou patrimoniais. Pode-se somente dar conta, em sede de teoria do direito, dos nexos entre bens e direitos patrimoniais e entre bens e direitos fundamentais. Os bens patrimoniais são objeto de direitos patrimoniais enquanto – e somente enquanto – podem ser não somente utilizados mas também desperdiçados segundo o clássico paradigma proprietário do ius utendi et abutendi. Pelo contrário, os bens fundamentais são objeto de direitos fundamentais enquanto – e somente enquanto – são objeto de limites ou vínculos, ou seja, das proibições de disposição ou de obrigações de prestação correspondentes aos mesmos, como a proibição do comércio de órgãos ou a proibição da exploração da prostituição, as proibições das atividades poluidoras, aquelas que limitam ou impedem a apropriação de recursos não renováveis e por isso reconhecidos como comuns, ou as obrigações de distribuição de bens vitais como a água, os alimentos básicos e os medicamentos essenciais.

4. Uma tipologia dos bens fundamentais: bens personalíssimos, bens comuns e bens sociais. Por uma carta constitucional dos bens fundamentais – Podemos distinguir, sobre a base da sua diversa estrutura, três grandes classes de bens fundamentais: a) os bens personalíssimos, que são objeto de direitos passivos consistentes  unicamente em rígida imunidade ou ‘liberdade da’ sua violação, sua apropriação ou utilização por parte de outros: como os órgãos do corpo humano cuja integridade perfaz um todo com a salvaguarda da pessoa e da sua dignidade; b) os bens comuns, que são objeto de direitos ativos de liberdade, consistentes, além de imunidade de devastação e saque, também em faculdade ou ‘liberdade de’ isto é, no direito de todos de aceder ao seu uso e gozo: como o ar, o clima e os outros bens ecológicos do planeta, de cuja tutela depende o futuro da humanidade16;  c) finalmente os bens sociais, que são objeto de direitos sociais à subsistência e à saúde garantidos pela obrigação da sua prestação: como a água, os alimentos básicos e os assim chamados “medicamentos essenciais”17.

      A necessidade de recorrer a estas categorias – os bens fundamentais e as três classes ora especificadas – com finalidade  explicativa e, sobretudo,  reivindicadora do papel garantista do direito, baseia-se nas mudanças provocadas na relação entre homem e natureza pelo desenvolvimento da indústria e tecnologia. Toda a história das coisas e dos bens é uma grande história social, no curso da qual, graças à sua crescente valorização e ao desenvolvimento tecnológico, muitos objetos, como por exemplo as matérias primas, tornaram-se coisas à medida em que foi descoberta a sua utilidade; muitas coisas, como por exemplo as terras incultas e seus frutos tornaram-se bens patrimoniais na medida do crescimento da escassez e esgotamento da sua ilimitada disponibilidade; muitas coisas e muitos bens patrimoniais, finalmente, como o ar e outros bens ecológicos, a água, os medicamentos essenciais e a alimentação básica tornaram-se – ou seria justo que se tornassem -  bens fundamentais quando manifestou-se a sua vulnerabilidade e a sua não renovabilidade, ou, pelo contrário, a sua aptidão para serem produzidos e portanto a possibilidade de garanti-los a todos como fatores de sobrevivência.

      Hoje é sobretudo esta última transformação, a de transformar em bens fundamentais muitas coisas e muitos bens patrimoniais, a que é exigida pelas mudanças tecnológicas e pelo desenvolvimento da cultura jurídica. Impõe-se em primeiro lugar, por causa do desenvolvimento das técnicas cirúrgicas de transplantes, a necessidade do reforço das garantias dos bens personalíssimos contra as muitas possibilidades, no passado nem sequer imagináveis, de atos de disposição e de alienação. Manifesta-se em segundo lugar a transformação em bens comuns  de muitos bens ecológicos que, até há poucos anos, não eram nem mesmo bens mas simplesmente coisas, como a água e a atmosfera, e que, a causa da superveniente escassez e vulnerabilidade devidas às crescentes agressões e devastações, tem-se revelado fundamentais para a sobrevivência do gênero humano. Requer-se, afinal, por causa do desenvolvimento tecnológico das indústrias farmacêutica e  alimentícia, que tornou possível a produção artificial e a distribuição a todos dos múltiplos bens vitais – como os medicamentos essenciais e muitos bens alimentícios -, a qualificação de tais bens como bens sociais, acessíveis a todos, como garantia dos direitos de todos à sobrevivência e à saúde.

      Estas mudanças de status das coisas  e dos bens requerem, todas elas,  a intervenção do direito. Diversamente das transformações dos objetos em coisas e de coisas em bens patrimoniais, determinadas ambas pela sua crescente escassez e valorização, a garantia de novas coisas e novos bens como bens fundamentais requer  de fato uma escolha política civilizatória: a decisão de submeter ao direito as relações de mercado. A simples valorização econômica, com efeito, na ausência de uma intervenção pública, pode muito bem determinar – e de fato tem frequentemente determinado -, em contraste com interesses públicos vitais, o processo exatamente oposto: a privatização destes mesmos bens, transformados, de bens comuns e portanto fundamentais, em bens patrimoniais. Em suma, a apropriabilidade originária e disponibilidade natural de muitas coisas – como tem sido tipicamente a água potável – é destinada a tornar-se, pela  crescente escassez dessas coisas,  uma apropriação e uma disponibilidade jurídica, que somente  se verificará sob a forma de bens fundamentais comuns, mais do que naquela de bens patrimoniais, podendo assim ser garantida a todos e preservada da dissipação, destruição e especulação privada. Inversamente, a originária inapropriabilidade e indisponibilidade natural  de muitos objetos, como por exemplo os órgãos do corpo humano, tornou-se, em conseqüência da adquirida e experimentada apropriabilidade tecnológica, uma respectiva apropriabilidade  e disponibilidade jurídicas que, novamente, somente se verificará sob a forma de bens fundamentais personalíssimos, mais  do que sob a forma de bens patrimoniais, podendo assim  ser impedida e penalizada como tutela dos sujeitos mais fracos. Afinal, a destruição e a distribuição operada pelo homem de muitos bens, como são por um lado os bens ecológicos e por outro os medicamentos essenciais, poderão ser a primeira proibida e a outra tornada obrigatória somente se tais bens forem garantidos a todos, uns como bens fundamentais comuns e outros como bens fundamentais sociais, em vez de tratados simplesmente como coisas ou como bens patrimoniais.

      Entende-se, dadas as dimensões e a dramática gravidade destas mudanças, a necessidade de acrescentar à categoria dos direitos fundamentais aquela não menos essencial dos bens fundamentais, distinguidos nas três classes de bens personalíssimos, bens comuns e bens sociais. A linguagem dos direitos, mesmo que fundamentais,  resulta totalmente inadequada para formular as técnicas de tutela exigidas por cada um desses bens. Precisamente isso é suficiente para tematizar as formas de tutela somente dos bens personalíssimos, consistentes, ao lado dos direitos dos quais são objeto, em imunidades individuais garantidas por outras tantas proibições fundamentais. Mas ela é totalmente inadequada para os bens sociais, e não o é de todo para os bens comuns,  seja assumindo, em contraste com a gramática do direito, como titulares, além das pessoas singulares, a própria natureza18, seja identificando esses titulares com sujeitos coletivos, como os povos,  a comunidade ou talvez a humanidade inteira19.

      São pelo contrário os bens, enquanto vitais e por isso fundamentais, que são assumidos eles próprios como objeto de garantia, em acréscimo aos respectivos direitos fundamentais, através da introdução de proibições de sua lesão ou de obrigações de sua prestação, mais do que as funções e instituições de garantia voltadas à sua tutela ou à sua distribuição. Nesta perspectiva, às muitas cartas e convenções, internacionais e constitucionais, dos direitos fundamentais, deveriam acrescentar-se Cartas constitucionais e Cartas internacionais dos bens fundamentais, idôneas por um lado, como garantia dos bens personalíssimos e dos bens comuns, para impor limites rigorosos ao mercado e ao desenvolvimento industrial, e pelo outro lado, como garantia dos bens sociais, para vincular a política para torná-los acessíveis a todos20. Tratar-se-ia de normas téticas no sentido acima ilustrado: isto é, de normas  que, diferentemente das normas hipotéticas que disciplinam a troca de bens patrimoniais, constituiriam elas mesmas tais bens como fundamentais, não diversamente, como se verá mais adiante, de como fazem as atuais normas do código civil que constituem tais bens como “bens públicos”. Somente que deveria tratar-se de normas de nível constitucional, e se necessário de nível internacional, donde os limites e vínculos impostos ao mercado e à política para a tutela de tais bens são resguardados das violações do legislador ordinário e por isso das maiorias contingentes.

     A natureza destes limites e vínculos e seu grau de rigidez dependem naturalmente do caráter mais ou menos vital dos bens fundamentais que se tenta proteger e das formas de sua possível utilização: do caráter regenerável ou não-regenerável tanto das partes do corpo humano como dos bens ecológicos, do caráter gratuito da sua cessão e dos usos aos quais são destinados. Proteger um bem como fundamental quer dizer em todo  caso torná-lo indisponível, isto é inalienável e inviolável, e portanto subtraí-lo ao mercado e ao arbítrio das decisões políticas, portanto de maioria. Também sob este aspecto os bens fundamentais reafirmam o paradigma dos direitos fundamentais dado que também as suas garantias equivalem a limites e a vínculos impostos, para a tutela de todos e de cada um, seja aos poderes privados, através da estipulação da sua indisponibilidade, seja aos poderes públicos, através da estipulação da sua inviolabilidade, e ao mesmo tempo, a obrigação de garantir a todos a sua fruição. Podemos acrescentar que se as cartas de direitos fundamentais evocam a idéia do “contrato social”  de convivência pacífica entre os homens, uma Carta internacional dos bens fundamentais configurar-se-ia como uma espécie de “contrato natural”  de convivência com a natureza21 e poderia abrir-se, parafraseando o preâmbulo da Carta da ONU, com as palavras: “Nós, povos das Nações Unidas, decididos a salvar as futuras gerações do flagelo do desenvolvimento insustentável, que no curso desta geração tem provocado indizíveis devastações ao nosso ambiente natural; decididos ademais para assegurar a todos a garantia dos mínimos vitais e para impedir violações dos corpos das pessoas, possibilitados ambos pelo progresso tecnológico, acordamos...” as seguintes medidas urgentes para garantir os seguintes bens fundamentais da humanidade.

     Para identificar estas medidas e estas garantias em relação aos diversos tipos de bens protegidos, distinguirei duas ordens de diferenças estruturais entre as classes de bens nas quais diferenciei todos os bens fundamentais. A primeira é aquela, que já apontei, da sua diferente relação com os direitos fundamentais dos quais são objeto: enquanto os bens personalíssimos são tutelados pelas garantias dos respectivos direitos de imunidade dos quais são indissociáveis, as garantias dos bens comuns e dos bens sociais requerem instituições públicas voltadas de modo geral respectivos à sua proteção ou à sua prestação. É claro que estas garantias não podem limitar-se apenas às garantias dos direitos respectivos, exigindo-se também o desenvolvimento de complexos aparatos administrativos voltados, como se verá nos §§ 6 e 7, a funções específicas de tutela dos bens comuns e de distribuição ope leges dos bens sociais.

     Além disso, há também uma segunda diferença: os bens personalíssimos e os comuns são bens naturais, objeto de direitos negativos de imunidade – os primeiros dos quais que bem podem ser chamados de direitos biológicos á integridade pessoal, os segundos que podemos chamar de direitos ecológicos à integridade do ambiente – consistentes todos em expectativas negativas às quais correspondem, como garantias, proibições de lesão. Os bens sociais, ao invés, são bens prevalentemente artificiais objeto de direitos sociais positivos, consistentes todos em expectativas positivas às quais correspondem, como garantia, obrigações de prestação. São consequentemente diferentes as garantias exigidas pelas duas classes de bens. As garantias dos bens fundamentais naturais, sejam eles personalíssimos ou comuns, residem na sua indisponibilidade, conexa ao fato de que os bens personalíssimos constituem-se como um todo indissociável da integridade da pessoa, pertencendo aos seus titulares e a nenhum outro, e os bens comuns são patrimônio comum da humanidade, pertencendo a todos sem exclusão. Pelo contrário, as garantias dos bens fundamentais sociais como a água, a alimentação e os medicamentos essenciais, residem na obrigação pública da sua prestação, conseqüência do fato de que sendo eles produzidos ou distribuídos pelo homem, não pertencem por si mesmos a todos, nem são acessíveis naturalmente àqueles que deles fazem uso: eles são fundamentais, como melhor veremos adiante, apenas na medida em que são objeto dos correspondentes direitos sociais à sobrevivência.

5. Os bens personalíssimos - Os bens personalíssimos, como referido, formam a classe dos bens fundamentais mais estreitamente ligada aos direitos vitais da pessoa. O princípio da sua indisponibilidade, conseqüente ao valor da pessoa, possui a forma de uma proibição: “os atos de disposição do próprio corpo”, estabelece o já recordado artigo 5 do código civil, “são proibidos quando ocasionam uma diminuição permanente da integridade física, ou bem quando são contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes”. O problema da sua garantia tem se manifestado sobretudo com o desenvolvimento da tecnologia médica e cirúrgica, que tornou possível o transplante e em consequência a alienação e a utilização por parte de outros. Daí a proibição absoluta de qualquer violação deles, tanto mais necessária e relevante – para a tutela da integridade da pessoa e contra o drama do tráfico de órgãos – quanto mais fácil tecnicamente é a sua desobediência.

     O limite imposto à autonomia privada sobre os bens personalíssimos reflete, evidentemente, uma forma de paternalismo. Mas é o próprio paternalismo o que está à base da indisponibilidade dos direitos fundamentais: tais bens são subtraídos ao poder de disposição de seus possuidores justamente para protegê-los da sua alienação, e portanto da sua redução a bens patrimoniais e da conseqüente regressão à lei do mais forte.  Se de fato os titulares de tais direitos tivessem o poder de dispô-los conjuntamente com os bens disponíveis – por exemplo, vendendo a sua liberdade ou partes do seu corpo ou tornando-se escravos – tais direitos e tais bens deixariam de ser universais, e portanto fundamentais, e tornar-se-iam patrimoniais. E se produziria uma insolúvel aporia: um tal poder de autodeterminação civil, enquanto absoluto e ilimitado, comportaria – não diversamente de um poder de autodeterminação política igualmente ilimitado – também a disponibilidade dos próprios direitos de autonomia, com o conseqüente colapso da própria autodeterminação e, reflexamente, do inteiro edifício jurídico das liberdades civis.

     Por trás destas concepções ditas libertárias há na realidade uma extensão indevida do léxico proprietário que corre sempre o risco de ser o veículo de uma desviante confusão entre direito real de propriedade, logo singular (excludendi alius) e disponível, e direitos fundamentais, enquanto tais universais (omnium) e indisponíveis como são por um lado o direito civil de alienar direitos reais de propriedade e pelo outro o direito à saúde e à integridade pessoal. O risco é estender-se o conceito de “propriedade” até o seu uso indiscriminado, enquanto substantivo do adjetivo possessivo “próprio” também no tema de identidade pessoal e de relações familiares, afetivas, de trabalho e similares. Como já relevei várias vezes, a origem desta expansão invasiva do léxico proprietário e da confusão entre propriedade, liberdade e identidade pessoal22, remonta a John Locke: “cada um”, escreve Locke, “tem a propriedade da própria pessoa”, inclusive portanto “aquilo que lhe é próprio” 23. Fala-se assim de propriedade do “próprio” corpo, de propriedade do “próprio” trabalho, de propriedade dos “próprios” direitos e talvez dos “próprios” filhos ou do “próprio” cônjuge 24 ou similares.

     Pessoas e coisas são no entanto   temas diferentes, aos quais não se pode associar os mesmos predicados. E mais: como afirma a máxima kantiana segundo a qual nenhuma pessoa pode ser tratada como uma coisa 25, essas são figuras entre si contrárias e incompatíveis 26. Ao corpo das pessoas não é portanto aplicável portanto o léxico proprietário. A propriedade diz respeito de fato às relações com as coisas; enquanto o corpo humano e seus órgãos não são coisas, como tais possíveis objetos de propriedade, mas partes integrantes da pessoa e da sua identidade física e psíquica: são aquilo que eles são e não já aquilo que eles têm. O “meu” corpo em suma, não designa um objeto de minha propriedade, mas minha identidade, não menos do que o “meu” pensamento ou a “minha” mente, e é portanto, o mesmo que estes, configurado como bem fundamental: inviolável, inalienável, intangível. 

6. Os bens comuns. Por um domínio público planetário – Os bens comuns (“common goods”) são os bens fundamentais aos quais são majoritariamente voltadas, embora em medida totalmente inadequada, a atenção da doutrina jurídica e a reflexão teórico-política. A noção, introduzida no léxico jurídico somente em tempos recentes tornou-se um tema de interesse e de mobilização política como sempre acontece quando se trata de bens ou direitos fundamentais, para exprimir uma reivindicação direta para por termo a uma específica violação: o desfrute dos recursos naturais por parte dos países mais ricos e, sobretudo, a devastação do planeta provocada pelo desenvolvimento industrial. É desta devastação e do perigo de uma destruição irreversível dos bens e dos recursos vitais para o futuro do gênero humano que nasceu a temática dos bens comuns: tais são os bens de todos – aqueles que os romanos chamavam de res communes omnium - como o ar, o clima, a água, as órbitas dos satélites, as bandas do éter, os recursos minerais das profundezas marinhas, a assim chamada biodiversidade e todos os outros bens do patrimônio ecológico da humanidade.

     Com respeito aos bens personalíssimos, os bens comuns apresentam características em parte similares e em parte opostas. Tanto uns quanto outros, como se viu, são bens naturais, cujo valor vital justifica a subtração à apropriação privada e a garantia a todos enquanto pessoas, como objeto de direitos fundamentais de imunidade.  Mas enquanto os bens personalíssimos são universais no sentido de que pertencem a cada ser humano e são acessíveis unicamente a ele com exclusão dos outros enquanto partes integrantes da sua pessoa, os bens comuns o são no sentido oposto de que pertencem e deve ser garantida a sua acessibilidade a todos pro indiviso, tanto assim que são configurados, em muitos tratados internacionais, como “patrimônio comum da humanidade”27, isto é, de um sujeito que inclui também as futuras gerações.

     É com referência aos bens comuns onde mais claramente se manifesta a inadequação do uso exclusivo da linguagem de direitos fundamentais. Embora a proteção de tais bens seja um interesse vital de todos, de tais interesses não são conscientes as pessoas singulares, embora titulares dos respectivos direitos fundamentais. Quando se envenena o ar de uma cidade ou se coloca em risco uma praia ou se abate uma floresta, os habitantes do lugar não pensam estar sendo privados de uma propriedade comum, mas consideram-se apenas como usuários, consumidores ou possíveis beneficiários de futuros loteamentos. Ainda menos vital e pela maioria das pessoas totalmente irrelevante e até incompreensível é, além disso, o interesse pela proteção do clima e dos equilíbrios ecológicos 28, que diz respeito até mesmo às futuras gerações cujos direitos são futuros e que somente podem ser resguardados protegendo os bens comuns e deixando-lhes de herança um planeta habitável.

     Manifesta-se neste caso uma grave aporia da democracia política. A ameaça mais grave ao futuro da humanidade é representada pelos efeitos desastrosos provocados pelo crescente aquecimento global gerado pelas emissões de gás estufa: o encolhimento das calotas de gelo na Groenlândia e na Antártida, a conseqüente elevação do nível dos mares, a acidificação dos oceanos, a redução da biodiversidade, a devastação das florestas e a desertificação de áreas crescentes do planeta, as mudanças nos fluxos da corrente do Golfo 29. Mas esta ameaça é totalmente ignorada pela opinião pública mundial, e consequentemente pelos governos nacionais, e portanto não entra, senão marginalmente, em sua agenda política inteiramente ancorada nos restritos horizontes nacionais desenhados pelas metas eleitorais. Já foi calculado que o mundo tem menos de dez anos para poder alterar o curso desta crise antes que ela se torne irreversível 30. Naturalmente, trata-se de previsões incertas. Mas a incerteza diz respeito  apenas ao prazo dos desastres, e não certamente, se não se intervém a tempo, à sua futura ocorrência.

     Enquanto as mudanças climáticas tem já produzido devastações e catástrofes31, que embora provocadas quase inteiramente pelas nações ricas 32 - em grau no entanto de enfrentá-los regulando os termostatos e aumentando os aprovisionamentos – tem golpeado de maneira incomparavelmente mais grave as populações mais pobres do mundo, como aquelas da África e das zonas costeiras33. Secas, desabamentos, furacões e ciclones tropicais atingem sobretudo os países mais pobres, aqueles que vivem da agricultura, com menos de um dólar por dia, provocando desertificações e inundações, reduzindo a disponibilidade hídrica e alimentar, destruindo as frágeis favelas e comprometendo irreversivelmente a capacidade produtiva e a possibilidade de desenvolvimento34 e é claro que todos estes danos estão destinados a agravar-se dia-a-dia senão for feito nada para preveni-los35.

     Daí  a necessidade de uma nova dimensão do constitucionalismo e do garantismo: um constitucionalismo e um garantismo a longo prazo, além de global, para além da lógica individualista dos direitos e da miopia e do estreito localismo da política das democracias nacionais. Na nossa tradição, de resto, o único poder que, pela via única dos direitos, foi tematizado como objeto de limites e vínculos legais tem sido o poder político estatal: “estado de direito”, não por acaso, é a expressão que designa no nosso léxico jurídico a sujeição do poder ao direito. Restam assim excluídos dois tipos de poderes, ambos não estatais, que são justamente aqueles principais responsáveis pelas catástrofes ecológicas e para cujo confronto sobretudo requer-se por isso a criação de um constitucionalismo e de um garantismo dos bens comuns: de um lado os poderes econômicos privados, tradicionalmente rotulados como liberdades; do outro, os poderes extra ou supra estatais, políticos ou econômicos, que se desenvolvem fora das fronteiras estatais no mundo globalizado.

     É em primeiro lugar necessário – sob a base do reconhecimento do caráter de poderes privados, mais do que de liberdades, dos direitos de iniciativa e de autonomia empresarial 36 - o desenvolvimento, em garantia dos bens comuns, de um constitucionalismo de direito privado, isto é de um sistema constitucional de regras, de limites, de vínculos e de controles supraordenado a tais poderes econômicos privados, além de sê-lo aos poderes políticos, e dirigido a disciplinar-lhes o exercício: de impedir, em particular, a emissão de substâncias tóxicas nocivas à saúde e ao ambiente, bem como a apropriação privada, a dissipação ou a destruição dos bens comuns como o ar e a água de cuja defesa depende o futuro do planeta e a sobrevivência da humanidade. Para tal fim se requer a construção de uma esfera pública enquanto esfera heterônoma com respeito aos direitos civis de autonomia e uma refundação do princípio de legalidade, em condições de disciplinar os poderes de outra maneira selvagens do mercado e de proteger as gerações presentes e futuras dos danos irreversíveis provocados aos bens comuns pelo seu exercício.

     É necessário, em segundo lugar, o desenvolvimento de um constitucionalismo de direito internacional. Mesmo porque as agressões aos bens comuns do ambiente – o aquecimento climático, a poluição do ar e dos mares, a redução da biodiversidade e a destruição de muitas espécies animais e vegetais – tem já assumido um caráter planetário, exigindo a introdução de normas, limites, vínculos, controles, funções e instituições de garantia por sua vez em nível planetário. Para tal fim, bem mais apropriada do que as técnicas de garantia experimentadas pelos direitos fundamentais é a direta proteção normativa de tais bens como bens públicos. É esta, de resto, a garantia de muitos bens comuns adotada nos ordenamentos estatais: a sua qualificação, por obra de normas tético-constitutivas37, como bens públicos38, como tais subtraídos à apropriação e à negociação privada e confiados à tutela da autoridade administrativa39. Mas é claro que o interesse geral expresso pela garantia dos bens comuns globais (“global commons”) não pode ser de nível estatal, mas sim de nível por sua vez global, através da instituição de um domínio público planetário. Tais bens deveriam em suma ser declarados bens públicos planetários por uma Carta internacional dos bens comuns e confiados à proteção de adequadas autoridades internacionais de garantia: em matéria de atmosfera, de águas potáveis, de biodiversidade e similares40.

     Além disso, há um outro problema: o energético, em parte análogo e portanto conexo ao dos bens comuns. Se prevê que em poucos decênios exaurir-se-ão as energias não renováveis, obtidas principalmente de recursos naturais de origem fóssil como o gás, o carvão e sobretudo o petróleo, saqueados nos últimos decênios pelas grandes companhias do Ocidente sob o signo das dinâmicas desreguladas do mercado. Em poucos decênios a humanidade destruiu um patrimônio energético acumulado em milhões de anos. E esta dissipação tem sido também a causa principal da poluição atmosférica e do aquecimento do planeta. A única alternativa ao colapso de toda a economia planetária e, ao mesmo tempo, à catástrofe climática é portanto, novamente, a construção de uma esfera pública internacional apta a  impor reduções às emissões e limites aos desperdícios e, sobretudo, sustentar o custo dos investimentos necessários para a criação das instalações necessárias para a produção de energias limpas, como o sol, o vento e as marés.

         Sob todos estes aspectos, os problemas gerados pela necessidade e pela urgência de proteger os bens comuns revelam uma interdependência ecológica que congrega todos os membros da família humana. É esta a grande, positiva novidade que esses problemas criaram. Para além de todas as diferenças políticas e culturais, das desigualdades econômicas e dos inumeráveis conflitos que atravessam e dividem a humanidade, a ameaça que hoje paira sobre os bens ecológicos adverte a todos que se trata de um patrimônio comum que nenhuma política nacional ou de liberalismo econômico poderá jamais confiscar ou privatizar: o planeta Terra com seus mares e sua atmosfera, que todos compartilhamos e que é do interesse de todos preservar. Esta ameaça é portanto não apenas o problema político mais grave, que deverá ser afrontado urgentemente com opções radicais dirigidas a mitigar as mudanças climáticas criadas pelo desenvolvimento de modos de vida e de tecnologias produtivas com base em emissões de gases estufa e, ao mesmo tempo estender aos países pobres as técnicas de proteção e de adaptação às mudanças desenvolvidas nos países ricos41. Isto representa também uma oportunidade sem precedentes na história: a possibilidade de refundar a garantia da paz e dos direitos humanos sobre a base da necessária interdependência mundial gerada por tal ameaça. O desafio global lançado por esta ameaça impõe de fato uma política global, baseada numa cooperação mundial à qual nenhuma potência poderá subtrair-se. E será vencido apenas se for criada uma esfera pública planetária à sua altura, garante de um interesse público geral bem mais amplo do que os diversos e contrapostos interesses públicos nacionais, porque identificada com o interesse comum de toda a humanidade. 

7. Os bens sociais – Denominei “bens sociais” aqueles bens – como a água potável, os medicamentos essenciais e os produtos necessários para a alimentação básica – que são objeto dos direitos sociais, isto é, daqueles direitos fundamentais que consistem em prestações, como a alimentação básica e a assistência sanitária42. Estes bens coincidem, em grande parte, com os bens fundamentais que não são tais por natureza, como o são os bens personalíssimos e os comuns, mas são duplamente artificiais: em primeiro lugar, no sentido de que são produzidos ou distribuídos pelo homem, e no sentido de que são convencionados como tais, isto é, como bens vitais que devem ser juridicamente acessíveis a todos, mesmo porque, por causa do estado de indigência, não são de fato naturalmente acessíveis a todos. Sob este último aspecto tais bens são “fundamentais”, por assim dizer, em sentido não objetivo, mas subjetivo: para quem não está em condições de adquiri-los como bens patrimoniais. O são,  saliento, na medida em que são objeto dos direitos sociais à sobrevivência estipulados nas cartas constitucionais e internacionais.

      A estipulação destes direitos como direitos fundamentais à sobrevivência é um fenômeno relativamente recente, afirmados nas constituições do século passado graças à mudança de sentido do mais importante dos direitos humanos: o direito à vida. Na tradição liberal este direito foi concebido unicamente como um direito de imunidade, isto é, de não ser morto. A sobrevivência era de fato concebida pela ideologia liberal, como um fenômeno natural, garantido a todos pela relação direta do homem com a natureza e portanto, simplesmente, pela sua livre iniciativa e vontade: resumindo, segundo o paradigma lockiano, da “entidade do trabalho do homem”, sobre cuja base “ a medida da propriedade é pela natureza bem estabelecida”43. Cada um, segundo esta concepção, tem a possibilidade de sobreviver desde que o queira: porque pode sempre trabalhar, se apenas o quiser, dado que haverá sempre campos nos quais tornar a viver dos produtos da terra e, no pior dos casos as terras incultas da América para as quais emigrar44.

           Hoje este pressuposto, se é que alguma vez teve fundamento, está  seguramente diminuído. No mundo hodierno, como provam o desemprego endêmico que aflige as nossas sociedades e as migrações em massa repelidas nas nossas fronteiras, rompeu-se irremediavelmente a relação entre sobrevivência, trabalho, e iniciativa individual autônoma. Sobreviver, portanto, é sempre menos um fato natural e sempre mais um fato social. Daí, na ausência de garantias sociais de sobrevivência, as desigualdades crescentes nos países ricos e a miséria apavorante na qual vivem e sobretudo morrem todo ano milhões de seres humanos não obstante o enorme aumento da riqueza produzida sobre o planeta45. E, em consequência, a  mudança no alcance do “direito à vida”  estabelecida pelo art. 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a vida encontra-se hoje ameaçada pela falta dos bens sociais – a água, o alimento e os medicamentos essenciais – em medida incomparavelmente maior do que pela possibilidade da sua supressão violenta por obra da criminalidade e até das guerras. Por isso o clássico direito à vida, cuja tutela foi assumida desde Thomas Hobbes como a razão de ser do direito e das instituições políticas não pode hoje não incluir, ao lado do direito de não ser morto, também o direito a sobreviver, e portanto à fruição dos bens necessários para tal fim.

      São três as grandes, terríveis emergências globais que estão provocando dezenas de milhões de mortos cada ano e tornam necessária  e urgente a qualificação destes bens como fundamentais: a fome, a sede e as doenças curáveis mas não curadas. A garantia do acesso universal a tais bens – a água potável, os alimentos básicos e os medicamentos essenciais – é possível apenas através da sua subtração à lógica do mercado e a atribuição à esfera pública da sua distribuição e, se necessário, da sua produção. Diversamente dos bens personalíssimos e dos bens comuns, como já referi, estes bens podem muito bem ser também patrimoniais, mas apenas na quantia excedente ao mínimo vital. Por causa da sua escassez, deve ser reconhecido o seu caráter público e fundamental na medida necessária para satisfazer os direitos sociais à subsistência. E este reconhecimento é do interesse de todos, e não somente das populações pobres. O constitucionalismo dos bens sociais, não diferentemente daquele dos bens comuns, também é um constitucionalismo a longo prazo: como a experiência dos países ricos ensina, o investimento em despesas sociais – a instrução, a saúde, a subsistência – é o primeiro investimento produtivo, dado que realiza, com a garantia dos mínimos vitais, a primeira condição da produtividade tanto individual como coletiva e portanto do desenvolvimento econômico. Em suma, se é verdade que os direitos sociais custam46, o custo da falta da sua satisfação é muito maior, condenando bilhões de seres humanos à indigência e ao desenvolvimento e sendo fonte inevitável de migrações de massa e de conflito47.

         A primeira emergência dramática é aquela do acesso à água, objeto daquele corolário do direito à vida que é precisamente o direito à subsistência. A água potável não é mais, de fato, um bem natural, nem muito menos um bem comum naturalmente acessível a todos. Mais de um bilhão de pessoas não tem a possibilidade de aceder a ela; e por esta impossibilidade milhões de pessoas morrem todo  ano. A água, de fato, tornou-se um bem escasso por dois motivos: pelas agressões ao patrimônio florestal, que provocam todo ano a devastação de milhões de hectares, muitos dos quais viram deserto; pela poluição das nascentes, dos rios e dos aqüíferos, provocados pelas atividades industriais desreguladas; e pela massiva privatização, enfim, dos recursos hídricos que paradoxalmente são reduzidos a bens patrimoniais no mesmo momento em que se exige, pela sua escassez, a sua garantia como bens fundamentais. Esta garantia somente pode consistir na transformação da água potável num bem público, submetido a um tríplice estatuto: a obrigação da sua distribuição gratuita a todos na medida necessária para satisfazer os mínimos vitais (calculada em pelo menos 40 ou 50 litros diários por pessoa); a proibição da sua destruição e do seu consumo além de um determinado limite máximo; a taxação, enfim, em bases progressivas dos consumos excedentes do limite mínimo, mas inferiores ao limite máximo48. E é evidente que para tal fim se requer a instituição, a nível internacional, de uma Autoridade independente para as águas potáveis voltada à proteção dos recursos hídricos do planeta, ao controle de seu desperdício e de sua poluição, à taxação dos consumos excedentes aos mínimos vitais e, sobretudo, à distribuição capilar para todos da água potável através da instalação no mundo inteiro de poços, aquedutos, fontes públicas, serviços hídricos e sistemas públicos de irrigação.

         Um discurso análogo pode ser feito para o alimento, que na medida do mínimo vital forma o objeto a par da água, do direito a “uma alimentação adequada” estabelecido pelo art. 11 do Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais de 196649. Hoje mais de um bilhão de pessoas padece de fome50. Uma política alimentar dirigida a afrontar esta catástrofe deveria em primeiro lugar proteger e subvencionar a agricultura dos países pobres favorecendo-lhes o desenvolvimento, invertendo as atuais políticas do Fundo Monetário Internacional, que pelo contrário consentem o protecionismo agrícola e as subvenções estatais para a agricultura dos países ricos e impõem a abertura dos mercados aos países pobres. Para a proteção da agricultura desses países seria necessário disciplinar a exportação dos mesmos, visando à produção dos alimentos chamados “ogm” (organismos geneticamente modificados), de sementes não naturalmente reproduzíveis, para impedir que estes danifiquem a fertilidade dos terrenos e venham a provocar a dependência da agricultura dos países pobres em relação aos países ricos exportadores. Mas sobretudo deveria garantir-se a instituição de preços políticos dos produtos alimentares para os países pobres e, se necessário, a produção e a distribuição gratuita a tais países dos alimentos básicos. Finalmente, uma Autoridade internacional de garantia como é atualmente a FAO (Food and Agriculture Organization), deveria ser dotada de um orçamento bem superior ao atual, em condições de financiar as garantias supraindicadas e, em particular, a aquisição ou  a produção e a distribuição gratuita dos alimentos em favor das populações famintas. Trata-se, com efeito, ainda nestes casos, de bens patrimoniais na medida em que excedam, para cada um, o mínimo vital, mas de bens sociais na medida inferior a tal mínimo, necessária à satisfação do direito fundamental à subsistência.

         A mesma coisa pode dizer-se enfim para aqueles bens fundamentais que são os medicamentos essenciais, produzidos pelo desenvolvimento da pesquisa científica e pela tecnologia farmacêutica. Em 1977 a OMS (Organização Mundial da Saúde) propôs, para estes medicamentos, a seguinte definição: “definem-se como ‘medicamentos essenciais’ aqueles que satisfazem as necessidades sanitárias da maior parte da população e que devem portanto estar disponíveis a todo momento em quantidade suficiente e na forma farmacêutica apropriada”.  A lista – que originariamente era formada por pouco mais de 200 medicamentos e que em 1997 continha pouco menos de 30051 - implica a obrigação do fornecimento gratuito de tais medicamentos, e exprime, portanto, um projeto mínimo de igualdade no direito à saúde, que infelizmente tem sido dramaticamente insatisfeito. Muitos destes medicamentos, como as vacinas contra as doenças infecciosas, não custam quase nada, mas não são distribuídos e em alguns casos nem mesmo produzidos por falta de demanda nos países ricos. Outros – cerca de 15%,  entre os quais os medicamentos contra a AIDS e a meningite –são patenteados e portanto muito custosos para os países pobres52. O resultado desta gigantesca omissão de socorro são mais de 15 milhões de mortos por ano53, vítimas, portanto, mais do que de doenças, das leis do mercado54, claramente incompatíveis com o direito à saúde, cuja satisfação requer a distribuição gratuita a todos, através de postos farmacêuticos públicos, de todos os medicamentos essenciais, de acordo com seu caráter precisamente de bens sociais fundamentais. Para tal fim a OMS deveria ser provida de fundos adequados e de efetivas funções de garantia em grau de promover todas as atividades necessárias a satisfazer o direito à saúde: o financiamento público, internacional mais do que estatal, da pesquisa, sobretudo de doenças infecciosas e tropicais; a produção pública, por parte da OMS e  o fornecimento gratuito aos países pobres de todos os medicamentos essenciais não mais produzidos por razões de mercado, a começar pelas vacinas, na medida exigida pelas necessidade de cura e de prevenção; a exclusão ao patenteamento dos medicamentos essenciais, cuja produção e distribuição, incluídas as despesas com a pesquisa, deveriam ser confiadas à esfera pública, ou a aquisição das patentes por parte da OMS, ou ainda, no mínimo, a drástica redução de seu prazo de duração e a autorização aos países pobres  para produzir a baixo custo os respectivos medicamentos genéricos; o controle público sobre os preços internacionais dos medicamentos e a previsão de preços políticos para os países pobres; a imposição às empresas farmacêuticas privadas, acompanhada talvez de incentivos e abatimentos fiscais, de distribuir gratuitamente aos governos dos países mais pobres ou aos seus hospitais uma parte de seus produtos.

8. Por um constitucionalismo a longo prazo e de espaços amplos e por um garantismo global dos bens fundamentais – As diversas garantias supra ilustradas dos bens fundamentais correspondem  a uma dimensão nova e afinal inderrogável da democracia e do constitucionalismo. Totalmente nova, porque conexa aos recentes e crescentes desenvolvimentos  da indústria e das tecnologias, e no entanto inadiável, é a identificação de rígidos limites à lógica do mercado, para garantia dos bens personalíssimos e dos comuns, que envolve os dramáticos e nunca simples problemas da bioética e da ecologia. Estes limites se concentram de fato em limites ao desenvolvimento, pela tutela tanto das gerações presentes quanto das futuras. E comportam, pela primeira vez na história, um conflito entre direito e tecnologia, ou pior, entre direito e ciência, que contradiz e conduz a repensar a idéia, enraizada na cultura ocidental, do caráter progressivo do desenvolvimento tecnológico, bem como da liberdade de pesquisa e da experimentação científica. Menos nova em via de princípio, porque projetada com a estipulação dos direitos sociais nas cartas constitucionais e internacionais do segundo pós-guerra, mas no entanto nova e não menos dramaticamente carente no plano da efetividade, é a dimensão internacional de um constitucionalismo e de um garantismo dos bens sociais, a qual implica os enormes problemas da redistribuição global da riqueza e de uma futura política econômica supranacional coerente com ela.

    O que se requer para tal fim é a construção de uma esfera pública global. Contra os processos de integração econômica que caracterizam a globalização, o crescimento da interdependência planetária gerada pela ameaça aos bens ecológicos, a crise da soberania dos estados, ao deslocamentos das grandes empresas fora das suas fronteiras e de seu controle e à exploração crescente do trabalho não se tem desenvolvido uma esfera pública à altura dos novos poderes privados transnacionais. Disto resulta um vácuo de direito público que não pode ser preenchido pelo direito privado de produção contratual no qual vai-se modelando o direito da globalização55 e que, naturalmente, ignora os interesses públicos e reflete indelevelmente a lei do mais forte. Pois que o mercado, pela sua natureza, não pode produzir uma esfera pública, absolutamente essencial para a tutela dos interesses gerais. Podem-se criticar e talvez processar  por danos ao ambiente ou por omissão de socorro as grandes empresas poluidoras ou as empresas alimentícias ou farmacêuticas que não fornecem aos países pobres os medicamentos essenciais. Pode-se afinal reconhecer que é no interesse conjunto do próprio mercado o desenvolvimento de uma esfera pública  à altura de suas atuais dimensões globais, assim como o foi, de resto, a formação de uma esfera pública estatal nas origens do capitalismo. Mas é absurdo esperar que as empresas isoladas – isto é, o mercado, além da política – façam-se espontaneamente portadores de interesses públicos, como a tutela do ambiente ou o socorro às populações indigentes. É impensável que os interesses gerais – como a paz, a segurança contra as causas sociais da criminalidade e do terrorismo, a conservação do planeta – sendo, a longo prazo,  seguramente do interesse de todos e do próprio capitalismo, possam fazer parte do horizonte do capitalista individualizado; assim como seria impensável que o trânsito nas estradas ou a prevenção dos crimes, que claramente são do interesse de cada um, possam ser regulados e garantidos pela autonomia individual em vez de pela sinalização viária e normas penais, enquanto normas heterônomas de caráter geral e abstrato.

    Não existem portanto alternativas racionais a um futuro de violências e catástrofes  que não seja a construção de uma esfera pública planetária, absolutamente essencial  à garantia dos bens fundamentais: precisamente, de uma esfera heterônoma em condições de assegurar, de um lado,  a  imunidade dos bens personalíssimos e comuns da sua apropriação e devastação; e, de outro, a distribuição e o acesso de todos aos bens sociais. Se requerem para tal finalidade duas condições, uma de caráter institucional, a outra de caráter político e cultural.

    A primeira condição, de caráter jurídico e institucional, é  a definição normativa dos bens fundamentais  em Cartas constitucionais e internacionais e, correlativamente, a produção de uma adequada legislação garantista de atuação: o reforço e a redefinição dos poderes e das competências das atuais instituições de garantia, como a FAO e a OMS; a criação de novas instituições internacionais de garantia primária sob a forma de Autoridades supranacionais independentes, para a tutela do ambiente e do acesso de todos à água potável; a criação de instituições jurisdicionais de garantia secundária em condições de sancionar o inadimplemento e as violações das garantias primárias. Mas sobretudo é necessária, no plano institucional, a introdução de um fisco mundial, isto é, de um poder supraestatal de taxação voltado a procurar – para além das atuais políticas de auxílio, as quais, diga-se, são vergonhosamente carentes com respeito até aos esforços despendidos – os recursos necessários para financiar as despesas sociais globais por obra das instituições supranacionais de garantia antigas e novas.

    Move-se nesta direção a proposta da Tobin tax sobre as transações internacionais56; mas há uma segunda via, bem mais fecunda, de exação  fiscal global, que é indicada justamente na perspectiva da garantia dos bens comuns. Estes bens – a atmosfera, o equilíbrio ecológico, o espaço aéreo, as órbitas satelitais, as bandas do éter, os recursos minerais do solo marinho – são bens de todos (“patrimônio comum da humanidade”, como dizem para cada um deles os Tratados internacionais), cujo uso, desfrute e dano tem acontecido  até hoje  a título gratuito, como se fossem res nullius, em vantagem dos países ricos que foram e ainda são seus principais usuários. Já recordei, no § 6, que os principais responsáveis pelo aquecimento global e suas enormes conseqüências danosas que recaem sobre tudo nas populações pobres, são os países ricos, que com  15% da população mundial, provocam hoje, acrescidos do desenvolvimento industrial da China e da Índia, a metade das emissões de gases estufa57. Pois bem, por estas emissões e pelos danos gravíssimos que acarretam à saúde e à sobrevivência de todos  os pobres do mundo, existe uma responsabilidade jurídica, civil e não somente política, imputável aos países ricos e a suas empresas. E existe portanto, sobre a base de elementares princípios de direito privado,  além  da proibição, a obrigação  de ressarcimento do dano atribuível a todos quantos hajam provocado tal dano58.

    Não só isso. Também a simples utilização dos bens comuns, como o espaço aéreo e as órbitas satelitais, deveriam comportar a obrigação para os usuários de pagar, pelo enriquecimento indébito, uma adequada retribuição aos co-proprietários, isto é, à comunidade internacional. É claro que as somas devidas, seja a título de ressarcimento dos danos até hoje e ainda agora provocados, seja a título de indenização, ou melhor, de taxação pelo enriquecimento ilícito provenientes da utilização dos bens comuns não deterioráveis59, seriam mais do que suficientes não somente para pagar as dívidas externas dos países pobres, mas também para financiar toda a despesa social requerida pela nova esfera pública global.

    A segunda condição, prejudicial à primeira, da construção desta esfera pública global, é a superação, necessária para o desenvolvimento de um constitucionalismo a longo prazo e de grandes espaços, da aporia da democracia assinalada no § 6: a cessação da desinformação, do desinteresse e da ignorância em torno às atuais emergências globais e às novas tecnologias da informação, de uma opinião pública mundial que assuma os interesses planetários como novo parâmetro e medida do interesse público geral.  Somente a maturação de uma conscientização geral sobre as interdependências do planeta e a gravidade do problema que afetam a totalidade do gênero humano pode de fato promover uma “política interna do mundo”60 em condições de afrontar as tantas emergências planetárias  e de transformar tais emergências numa ocasião histórica, sem precedentes e irrepetível, de integração política e jurídica planetária. Este novo sentimento cívico deveria fundar-se sobre um novo sentido de pertencimento comunitário, alargado ao gênero humano inteiro, e sobre a percepção  como problemas políticos primários e como interesses públicos vitais dos problemas e dos interesses globais, ligados todos, de variadas formas, à garantia dos bens fundamentais. Uma vez que são interesses comuns, que atravessam as fronteiras e as gerações, não apenas a garantia dos bens comuns, mas também dos bens sociais, das quais dependem, além do crescimento econômico dos países pobres, a convivência pacífica, a segurança, a redução dos fluxos migratórios e o desenvolvimento, sob o signo da igualdade em direitos, dos processos de emancipação social, de integração global e democratização política .

    Sob este aspecto pode-se bem dizer que um primeiro embrião de opinião pública global em condições de pedir a promoção de políticas e instituições de garantia supra-estatais, foi expressado nestes últimos anos, paradoxalmente, pelos movimentos chamados “no global”. Não é de fato ousado afirmar-se que, para além dos rótulos, os verdadeiros adversários de um mundo globalizado tem sido até hoje sobretudo os governos dos países mais ricos, que tem defendido um arranjo capitalista mundial fundado sobre a desigualdade, sobre as soberanias nacionais, sobre o fechamento das fronteiras aos fluxos migratórios, sobre a ausência de limites ao mercado e ao desenvolvimento industrial e sobre um substancial isolacionismo do Ocidente; enquanto os mais ferrenhos defensores do globalismo jurídico tem sido os jovens que no mundo todo  tem-se mobilizado, por ocasião das cúpulas do G8, na reivindicação da paz, na defesa do meio ambiente, na rejeição do atual modelo de desenvolvimento insustentável e na exigência de uma regulação dos mercados, de uma maior justiça distributiva e da igualdade nos direitos fundamentais de todos os seres humanos prometida por tantas cartas constitucionais e internacionais. É pela expansão destes movimentos de contestação das formas atuais da globalização sob o signo do slogan “um outro mundo é possível”, que pode nascer, se prevalecer a razão, uma sociedade civil mundial unida na construção duma nova ordem constitucional global,  guiada pelo ideal de um único destino de todos os seres humanos e pela luta transnacional pelo direito, pelos direitos e pelos bens fundamentais.

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Tradução de Daniela Cademartori (UNIVALI/SC)

e Sergio Cademartori (UFSC)